Eduardo Garcia Carvalho do Amaral
É curioso, senão sintomático, que na escola, entre os professores, pouco discutamos o chamado “absenteísmo docente”. A recorrência das “aulas vagas”, se comprometem a aprendizagem dos alunos, também trazem prejuízos à normalidade da rotina escolar: juntar turmas, “adiantar aula”, dispensar os alunos, ou deixá-los sozinhos no pátio? Sejam quais forem as alternativas encontradas para driblar a ausência de um ou mais professores no período de aula, é de se supor que isso traga alguma desordem ao planejamento dos demais professores presentes. Não seria este um tema candente para uma reunião pedagógica? — Contudo, não: a ausência, por ser ausência, nada tem de pedagógico; pelo contrário, ela revela antes uma renúncia pedagógica. Mas a que se renuncia? Perguntar pelo silêncio sobre esta questão talvez diga muito do porquê os professores faltem.
Com efeito, o “absenteísmo” tornou-se mais um entre outros bodes expiatórios de nossas mazelas educacionais. Se a educação vai mal – e essa é a impressão geral que se tem presente na sociedade – corre-se a procurar os “culpados” e, ao encontrá-los, puni-los severamente pela falta cometida. Esta é a abordagem que o tema tem recebido nos inúmeros artigos, editoriais e reportagens na imprensa, bem como no discurso das autoridades e nas medidas governamentais adotadas contra o absenteísmo. O professor faltoso é réu acusado de boicote ou sabotagem às melhorias da educação.
Ora, se alguém falta ao emprego e sabe que este dia poderá ser descontado do salário, é razoável pensarmos que ninguém deixe de comparecer sem motivos. Entretanto, em se tratando de professores das escolas públicas, dá-se a entender que agiriam por simples má-fé, escorados em uma legislação demasiadamente permissiva. A ausência do professor revelaria sua “falta de compromisso” com a escola, a despeito de quaisquer “circunstâncias atenuantes” alegadas; ou então, seus motivos parecerão mais ou menos aceitáveis, segundo a opinião do gestor e de seus colegas. Trata-se aí de uma avaliação do caso concreto, particular, quando sua idiossincrasia estará exposta à complacência de uns e/ou à crítica de outros.
Senão, vejamos: para aquele que se ausenta, sua falta também parecerá absolutamente pessoal, mas desculpável — e só há desculpas onde exista sombra de algum sentimento de culpa que lhe seja introjetado e do qual deseja se desvencilhar. Qualquer um preferiria ficar de repouso em casa quando acometido por alguma enxaqueca ou outra indisposição física qualquer, ou para dar auxílio a algum familiar adoentado; é certo que em princípio não recairia aí nenhuma culpa, pois os motivos fogem completamente à sua vontade. Contudo, trata-se ainda assim de uma escolha entre ir ou não ao trabalho, pois haverão aqueles “heróis” da causa educacional que não faltariam nem mesmo em situações análogas. Idiossincrasias à parte – ou, como se diz: “cada um com os seus problemas” – tais exceções “heróicas” do sacrifício pelo trabalho e da abnegação, valorizados profissionalmente, tornam-se a medida para julgar quem falta ao trabalho.
É evidente que nestas condições haja um “constrangimento moral” que impede qualquer discussão aberta sobre o tema que não recaia no caso específico, entre censura e complacência, por um lado, e entre justificativa e desculpa, por outro.
Se fossem casos isolados e não repercutissem nas estatísticas, poderíamos supor que se tratasse tão somente de casos particulares, resultados de contingências e acidentes tratados de forma singular por cada professor, que alegará em sua defesa os seus motivos como justificativa de sua falta – e será difícil atinar nesta diversidade de causas alegáveis uma causa comum que torne possível explicar a alta incidência de faltas entre os professores. No entanto, há pesquisas que apontam para uma questão de saúde que acomete os professores, a considerar primeiramente as faltas motivadas por consultas médicas ou doenças relacionadas ao exercício profissional.
Este é um indício importante a ser analisado, na medida em que as condições de trabalho encontradas pelos professores promovem sua fadiga física e psíquica. Vários estudos sobre a questão apontam para um mesmo diagnóstico: a escola tornou-se insalubre. Um mal-estar veio residir no espaço escolar, um sentimento de impotência e frustração enormes frente a novas injunções escolares e a cobranças cada vez maiores, quando a educação ganha centralidade para uma sociedade altamente complexa de conhecimentos e informações e é preconizada como “prioridade de todos” — isso, em condições de trabalho que não correspondem ou até mesmo sejam adversas a tais exigências. O sintoma maior desse mal-estar são as inumeráveis faltas motivadas por doenças psíquicas, cada vez mais frequentes; soma-se a isso ainda um alto índice de professores medicados, afastados ou não da sala de aula, com sintomas de estresse, nervosismo — e depressão. Ao tentar corresponder às expectativas, o professor “compromissado” sucumbe à Síndrome de Burnout, cujo efeito é o avesso: descomprometimento com a escola, abandono dos vínculos afetivos com os alunos e colegas. O absenteísmo então será uma estratégia defensiva à experiência dolorosa deste mal-estar.
As causas aqui ainda são as conjunturais, que seriam amenizadas caso certas condições para o trabalho docente fossem observadas, como redução do número de alunos em sala de aula e jornada de trabalho adequada — nada que seja novidade, desde há muito na pauta de reivindicações do movimento sindical. As faltas médicas nos apresentam senão sintomas, nada desprezíveis, mas de todo modo conjunturais, de uma causa mais profunda, que é estrutural.
Por um lado, o discurso da culpabilização: os professores seriam maus profissionais, responsabilizados pelos prejuízos educacionais, sendo, além disto, descritos também como “incompetentes”, “mal formados” etc., em uma espécie de campanha sistemática e repetida que em tudo lembra o assédio moral. De outro, denunciando as precárias condições de trabalho em extenuantes jornadas, um discurso defensivo em que os professores seriam as vítimas, isentas assim de quaisquer responsabilidades pelo absenteísmo. De parte a parte, no entanto, algo nos escapa — mas que não é incomum a nenhuma outra ocupação profissional e que tem a ver com as transformações recentes no mundo do trabalho, quando o desemprego é crônico, os direitos são “flexibilizados” a fim de conter os custos da produtividade e a exploração do trabalho chega ao seu máximo. Trocando em miúdos, os professores se ressentem ao reconhecerem, de modo ineludível, sua “proletarização”, por causa dos salários apequenados, mas também, e sobretudo, pela profunda perda da identidade que sustentava a carreira do magistério.
Com efeito, isso encontra eco entre os professores, quando o silêncio é rompido, dando voz a uma posição defensiva (e um tanto cínica) segundo a qual a baixa remuneração justificaria o baixo comprometimento com a escola, como se existisse alguma relação mecânica e necessária entre “dinheiro” e “compromisso”. A situação é levada ao paradoxo: ou o professor não falta porque seu salário curto receia qualquer desconto no holerite, argumento mobilizado inclusive para não se aderir a uma greve; ou – permitam-me o chiste – o professor falta porque, por tão pouco, “mais-valia” ficar em casa, numa versão bastante heterodoxa da teoria econômica.
Também as recentes políticas públicas que, a título de “valorização do magistério”, prometem prêmios e bônus aos professores, são a outra face da moeda. Paga-se mais a quem tiver mais “compromisso”, isto é, ter assiduidade e “alto desempenho no exercício de suas funções”, a serem mensuradas em exames padronizados. Aos demais professores, que não alcançarem tamanha “distinção”, permanecerão com os salários apertados. A valorização do “mérito”, se é que distingue os “melhores”, mantém o conjunto da categoria com salários em nada condizentes com a suposta “nobreza da ocupação”, mantendo ainda inalteradas as condições de trabalho.
Não se quer aqui justificar o absenteísmo por uma simples questão salarial, mas por aquilo que tal posição revela, em primeiro lugar como desvalorização profissional: ser apenas um professor já não serve de “distinção” a ninguém. O salário traduziria assim o baixo reconhecimento ou baixa valorização social da profissão, indício que também se pode notar na baixa procura de cursos de formação de professores nas universidades pelos jovens que ainda ingressarão no mercado de trabalho. A imagem do professor, com efeito, perdeu seu brilho: ofuscou-se entre outras ocupações mais ou menos rentáveis. Trata-se pois do reconhecimento de que vendemos, por umas poucas merrecas, nossa força-de-trabalho; à nossa resistência ao rebaixamento de custos, não faltará quem aceite o “preço”, em um mundo cuja precariedade tem sido a marca para quem vive do trabalho.
“Proletário” é o trabalhador indistinto, disponível para ocupar um “emprego”, qualquer que seja, e para o qual o patrão o reconheça suficientemente capaz para a execução de uma determinada tarefa. Ou seja, somos tão trabalhadores quanto qualquer outro operário assalariado se não há mais qualquer “distinção” em ser professor ou outra coisa — e eis o sentido mais entranhado dessa proletarização, que incide sobre a identidade profissional, cuja perda torna indiferente quem esteja em sala de aula. Somos então força-de-trabalho, tomada aqui sem nenhuma especificidade “docente” e talvez porque esta especificidade também já tenha se perdido.
Talvez o ofício docente tenha sofrido algo de semelhante ao que se sucedeu antes a outros ofícios quando da revolução industrial que, marcadamente, deu forma a esta classe social dos proletários. Tudo se passa agora como se a escola se convertesse em uma fábrica, e o trabalho artesanal perdesse lugar para a linha de produção.
[O sugestivo argumento que desenvolvo a partir deste ponto se deve um relato que chegou a mim através do professor Matheus Lima, da rede pública estadual de São Paulo, de uma conversa com um colega. Quanto à passagem, devo também indicar a leitura de um precioso ensaio do professor Roberto SCHWARZ, “Didatismo e Literatura” in O Pai de Família. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.]
No trabalho artesanal, o trabalhador era senhor de seu próprio fazer, da habilidade técnica de que dispunha, dos meios de produção e finalmente do produto de seu fazer; era responsável por todo o processo de produção, desde o planejamento até a fabricação do produto e sua venda. O trabalhador se reconhece na “obra”, enquanto execução sua, enquanto investimento de sua força-de-trabalho, de seu engenho e criatividade, de sua autonomia. É certo também que a produção era assim limitada, porque também o artesão é senhor de seu próprio tempo: ele trabalha no ritmo de sua destreza e de suas possibilidades. Essa é a experiência do trabalho através da qual forja sua própria identidade.
Quando o aumento na demanda da produção extrapola as condições dadas, uma reconfiguração no trabalho é exigida, primeiramente com as manufaturas, em que o processo de produção é dividido entre vários artesãos, divisão que culminará depois na produção fabril, nas fábricas em que o trabalhador tem sua força-de-trabalho empregada sob o ritmo das máquinas e com acelerado aumento da produção. Contudo, aí, o trabalhador já não é mais senhor de nada. Vende seu “tempo” em troca de um salário, tempo pelo qual o patrão faz uso da sua força-de-trabalho, expropriando o trabalhador de sua própria “obra”, na qual não mais poderá se reconhecer, expropriando-o também de seu fazer. Para as tarefas que agora são exigidas, qualquer especificidade que conferia à obra a identidade do trabalhador é esvaziada: sua destreza, habilidade técnica, engenho ou criatividade não mais lhe pertencem, embrutecidas em tarefas parciais e repetidas à exaustão. Assim, tais tarefas podem ser desempenhadas por qualquer um, “proletário”, trabalhador indistinto, massa de mão-de-obra disponível e, portanto, barateada.
Ora, a recente universalização do acesso à escola trouxe obviamente um aumento na “demanda” e uma exigência por aceleração no ritmo da “produtividade”, ou seja, do fluxo de promoção dos alunos até sua diplomação. Novos recursos, técnicas e tecnologias estão à disposição dos professores para “ensinar mais e melhor”, em apostilas, livros didáticos, vídeos e toda sorte de metodologias e pedagogias. Mais do que isto, até: exige-se da escola uma “gestão competente”, que faça o trabalho render e ter qualidade e, para tanto, há que se estabelecer metas e objetivos, controlar cada passo, cada procedimento adotado, monitorá-los e avaliá-los. Nada disso é estranho ao dia-a-dia da escola. Não por acaso um tal discurso educacional é, na verdade, uma transposição do discurso do administrador de empresas, e o mesmo se repete seja em uma escola ou em uma fábrica. Esta contaminação da educação pela administração – não apenas discursiva, mas nas práticas adotadas dentro da escola, inclusive as tediosas “dinâmicas motivacionais”, as artificiosas apologias do “espírito de equipe e trabalho coletivo” que povoam as orientações técnicas dadas aos gestores escolares – revelarão a causa de um certo mal-estar.
Se antes o professor tinha em seu trabalho a marca de sua própria identidade forjada pela sua experiência, desde sua própria formação e depois, no plano de aulas, nos percursos que escolhia, nos materiais e recursos julgava mais adequados, nas avaliações que realizava de seu próprio esforço e também para acompanhar a progressão dos alunos, de modo que poderia, como o artesão, reconhecer-se a si mesmo nos resultados de seu trabalho, pois é ele que estabelecia as mediações possíveis na relação com seus alunos e, portanto, seu trabalho não lhe era indiferente, porque sua prática era carregada de um sentido “autoral” — o sentido dessa experiência docente lhe foi extorquido, como o do operário na linha de produção.
Há um outro que de antemão planeja as aulas, que indistintamente define percursos, materiais e recursos a serem adotados, em um ritmo preestabelecido, como o de uma “máquina”: é tal o efeito que podemos observar da adoção de apostilas, primeiramente nas escolas de redes particulares de ensino e, agora também, nas escolas públicas. Além disso, as avaliações padronizadas que não mais se colocam na mediação do professor e seus alunos, mas antes querem monitorar e controlar o que se passa na sala de aula. O trabalho intelectual, autoral, do professor é “desautorizado” porque esvaziado em uma rotina estabelecida alhures, para dar conta da “produtividade” escolar. A despeito de si mesmo — de tudo o que pensa, julga e cria, coisas que podem até servir de “complemento curricular”, desde que dê conta antes da programação que lhe é alheia — ocupa o tempo regulamentar de uma aula, repetidas e exaustivas vezes, sob condições em que ele mesmo é dispensável e, sem prejuízo “pedagógico”, substituível por outro professor: basta saber operar a máquina, digo, a apostila.
Então, penso que se não é o caso de inverter nossa questão: afinal de contas e consideradas as atuais condições — por que é que um professor ainda vai à escola? Para além do emprego pelo qual recebe seu salário, o que o move a ainda ser professor? — O que fica silenciado e de difícil reconhecimento é a renúncia àquilo que, algum dia, pesou na escolha da profissão. O sentido da ausência não é senão de uma resistência, nem sempre consciente, nem mesmo voluntária, ao desencanto com a escola e o ofuscamento da imagem distinta, valorada em si mesmo e carregada de afetividade que tínhamos da profissão de professor. Sobrou a ocupação de um posto de trabalho, cujo sentido, entretanto, só poderia residir no trabalho autônomo, livre e autoral, mas também limitado, é certo, às estreitas relações que este professor poderia manter com seus alunos — mas dava-lhe garantias de reconhecimento de si próprio em seu trabalho de artesão, tornando-se assim imprescindível sua presença. A motivação de um professor está em nenhum outro lugar a não ser em si mesmo, quando encontra condições para sua realização, profissional, e de sua própria identidade. O silêncio sobre essa questão é sintoma de um processo doloroso de perda e culpa e também de desespero.
Out-dez/2009
À convite do Observatório da Educação da Ação Educativa