Acervo:
“Paulo Freire Contemporâneo”
“Paulo Freire Contemporâneo”
Em 2007, o Ministério da Educação, através da Secretaria de Educação à Distância, mantinha a programação da TV Escola, que visava à formação de professores.
Tive a oportunidade de participar do programa Acervo, então comandado pelo Professor Walmir Cardoso. Na ocasião, o programa veiculou o documentário “Paulo Freire Contemporâneo”, produzido em 2006 e dirigido por Toni Ventura. O que se segue é a proposta de trabalho que redigi a partir do documentário.
Lembro que cheguei a gravar com Walmir, mas não sei dizer se o programa chegou ir ao ar, tampouco o encontrei publicado no YouTube.
No centenário do nascimento de Paulo Freire, achei oportuno republicar por aqui o texto, com pequenas alterações e atualizações.
Eduardo Garcia C. do Amaral., 2021.
É sabido de todos que um dos grandes desafios do ensino médio tem sido o de fazer dos alunos bons leitores, isto é, que tenham uma boa compreensão de textos entre os vários gêneros discursivos, bem como consigam escrever razoavelmente textos, com coerência e correção, observadas as regras gramaticais e ortográficas da língua portuguesa. E tanto maior o desafio quanto mais diagnosticamos que, por inúmeras razões possíveis, os alunos têm chegado do ensino fundamental com um sem número de dificuldades, quer na compreensão de textos, quer na escritura. Não discutiremos aqui tais razões possíveis para esse quadro – trata-se aqui meramente de uma constatação. A questão que se nos coloca, no entanto, é o que fazer com tais alunos, cuja habilidade em ler e escrever encontra-se muito aquém do que esperávamos que estivessem.
Tais dificuldades incidem em todas as disciplinas e repercutem no que os alunos conseguem reter delas ou desenvolvê-las. Afora o fato de que, em muitos casos, é pela linguagem escrita que avaliamos nossos alunos. Tanto é assim que alunos que tenham maior fluência ou domínio da linguagem escrita tendem a ter melhor desempenho em nossas provas.
A proposta de trabalho que desenvolveremos aqui quer apresentar um caminho possível de como lidar com isso, de modo interdisciplinar. As sugestões que faremos, a partir da exibição do vídeo documentário “Paulo Freire Contemporâneo”, dirigem-se a dois momentos complementares: um primeiro momento, nas reuniões pedagógicas, pois acreditamos que os professores, antes de qualquer trabalho com os alunos, devam também discutir o vídeo, trabalhar com ele em vista de sua própria formação e para o planejamento conjunto das atividades a serem desenvolvidas com os alunos, que é o segundo momento do trabalho.
Para falar de Paulo Freire. Dispensamos aqui uma longa apresentação de nosso personagem – apresentação que o documentário responde por si só e de modo muito mais tocante do que poderíamos fazer agora. Pretendemos apenas chamar a atenção para alguns aspectos abordados no vídeo, decorrentes da elaboração teórica de Paulo Freire e sobretudo da prática de sua ação educativa e que nos interessarão estrategicamente para elaborar uma proposta de trabalho. A seguir, o vídeo, captado pelo YouTube, e após alguns comentários e sugestões de trabalho para a discussão entre os professores.
Paulo Freire Contemporâneo
Documentário, Brasil, 2006, 52 min
Direção: Toni Venturi
Roteiro: Helena Tassara, Sylvia Lohn
Fotografia: Jay Yamashita
Montagem: Eduardo Garcia
Produção: Produtora Olhar Imaginário
Antes que os homens falassem, eles já interpretavam o mundo. Depois de falar, muito tempo depois, é que inventaram a escrita, uma “codificação da fala”. Referimo-nos aqui, é claro, à escrita fonética, em que as letras representam “sons”, fonemas.
Parece um nadinha dizer isso assim – por trivial que pareça. Mas não é tanto assim. O que o argumento esconde é que a invenção da escrita corresponde a certas necessidades do próprio contexto histórico e social. Essas necessidades, no entanto, se perdem no esquecimento depois que o “código” foi estabelecido. A escrita [fonética] foi inventada como uma lembrança grafada de uma fala e, de certo modo, ela concorre em sentido contrário da memória, como “tradição oral”.
Não precisamos aqui recorrer ao diálogo Fedro, de Platão, no qual Sócrates examina a questão da introdução da escrita em oposição à fala (e ao diálogo, especificamente; cf. 274c-277a), embora seja um tema bastante instigante que pode ser explorado nas aulas de Filosofia. Seja como for, as enormes repercussões da palavra escrita para o mundo grego foram bem examinadas em um livro de Eric A. Havelock, A Revolução da Escrita na Grécia Antiga e suas consequências (São Paulo/Rio de Janeiro: Ed. Unesp/Paz e Terra, 1996).
Mas nos permitam um resumo grosseiro do argumento, apenas para pontuar a nossa discussão, ao perguntar o seguinte: qual é a interpretação de mundo que essa escrita codifica? De quem é esta fala que deve ser lembrada ipsis litteris? Que usos a palavra escrita assume ao ser inventada? — Claro está que não se trata de uma necessidade vivida da mesma forma por todos, mas refere-se primordialmente a um determinado grupo/classe social, que detém autoridade (também no sentido de “autoria”) sobre o “código”. Ora, isso tem a ver com o processo histórico de inclusão e de exclusão de grupos/classes sociais do “universo letrado”, considerando variáveis sociais e econômicas que facilitam ou dificultam em muito a aprendizagem do próprio código, como o acesso à educação formal (escolarização), acesso aos livros e documentos escritos, etc.
Uma primeira sugestão é que os professores de História incorporem essa temática em seus planos de aula. O assunto pode ser encontrado em vários livros de História da Educação. O tema, precisamente, é o fio condutor da ótima e de saborosa leitura de Mario Alighiero Manacorda, História da Educação: da Antiguidade aos nossos dias (São Paulo: Cortez, 7ªed.,1999).
Em algum momento do vídeo, Paulo Freire afirma que a alfabetização é por ele considerada como uma codificação da experiência concreta dos educandos. E eis um dos primeiros fundamentos nos quais a prática educativa proposta por Freire se desenvolve. No entanto, ao que tudo indica, essa ‘fala codificada como escrita’ se referia antes a uma determinada experiência – a de um determinado grupo/classe social, muito específico. Trocando em miúdos, não foi a “fala popular” que a primeira escrita expressou, tampouco foi a experiência dos que vem de baixo (sejam a de pessoas escravizadas ou trabalhadoras, ou digamos de modo genérico: “o povo”) que esta escrita quis codificar.
Em resumo e para melhor explicitar o ponto do argumento, digamos que a palavra escrita veicula uma interpretação do mundo, que não pode ser tomada como se fosse “natural” – mas sim, social e histórica. Os nomes que as coisas receberam, quem foi que os deu? Por quê? Por que esses nomes e não outros? Porque já havia uma interpretação – o que nos dá pistas qualquer pesquisa etimológica das palavras que costumamos empregar. Pois o sentido que damos às palavras, por vezes, é bastante diverso daquele que a sua etimologia ensina. Donde o segundo momento do “método”, que é tematizar as palavras, perceber nelas o seu sentido originário, por assim dizer.
Tomemos uma palavra, daquelas sempre presentes nas cartilhas e de uso mais corriqueiro, que poderia ser insuspeita: CASA. Como proceder a partir dela? Em primeiro lugar, a mera discussão do seu significado, pode dar margem a boas discussões com os alunos.
O que é que chamamos de CASA? Qual é a coisa que esse nome nomeia? Poderemos reparar que usamos o nome indistintamente para vários objetos diferentes entre si. Casa, de alvenaria, telhado, janela, na qual existem dormitórios, cozinha, área, quintal, varanda… Ou outra casa, um cômodo apenas, feita de restos de tábuas de madeira, em palafitas sobre as margens de algum córrego. Ou seja, dizemos CASA indistintamente para qualquer habitação, seja ela como for. O primeiro passo é fazer com que os alunos pensem sobre os diferentes tipos de habitação, por exemplo. Tentar entender porque é que são tão diferentes.
Uma consulta a um dicionário etimológico ou, o que aqui indicamos, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, rico em análises etimológicas, pode nos dar boas pistas de como a palavra foi abarcando todos estes objetos. Se formos pesquisar a origem desta palavra, portanto, veremos que ela não era o nome para “qualquer habitação”. A palavra CASA é de origem latina, CASA mesmo, mas designava uma habitação rústica, ‘popular’ por assim dizer: “choupana, cabana, casebre, arribana”.
Em oposição à palavra casa, a língua latina possuía outra palavra, DOMUS, que aí sim é aquilo que entendemos por esse nome “casa” hoje em dia. DOMUS, de onde vem a palavra ‘domicílio’, quer dizer ‘casa, morada, habitação’, explica o dicionário. E ‘domicílio’ tem a ver com ‘domínio’: é o lugar que está sob meu domínio, domínio privado, espaço privado.
É que a noção que a palavra latina carrega remete a outra, ainda seguindo as pistas do dicionário: ‘ec(o)-’, que é o mesmo antepositivo das palavras ecologia e economia, por mais diferentes que pareçam ser em seu significado.
ec(o)antepositivo, do gr. oîkos,ou ‘casa, habitação; bens, família’
A palavra OÎKOS, da língua grega, se refere a um conjunto de coisas que aprendemos a chamar por nomes diferentes. Significa ‘casa’ (que em um sentido bastante amplo poderemos entender o sentido da palavra ecologia), mas também todos os ‘bens’ (bens materiais, o que chamamos de ‘bens de consumo’) que a casa possui: a geladeira, o fogão, a mesa, o armário, as camas… tudo isso são as ‘posses’, os bens do ‘proprietário da casa’. Então, OÎKOS designa tudo que é de posse de alguém, o que é ‘propriedade privada’ e que, portanto, está sob domínio de alguém: o terreno em que a casa foi construída, bem como todas as terras que são de posse do proprietário de terras são da sua OÎKOS. Por extensão de sentido, ainda, toda riqueza e tudo o que pela riqueza se pode obter são também designados por OÎKOS (e eis a economia!).
Mas poderemos ainda estranhar que no dicionário, ao lado de ‘casa’ e ‘bens’, apareça também a palavra ‘família’ na explicação desse antepositivo ‘ec(o)-’. Pois a família, para os gregos antigos, é também parte da OÎKOS, tanto quanto os cavalos, que são propriedade do senhor das terras, são da OÎKOS. Ele é o senhor de tudo. A relação que se mantém entre os membros da família e o senhor (ou ‘chefe de família’) é uma relação de mando, de domínio, tanto quanto o proprietário manda e domina todos os seus bens. — Não é esta uma boa imagem para explicitar as relações privadas e familiares entre os povos antigos?
Ora, então a palavra CASA que empregamos carrega o sentido de propriedade privada (o “lar” e tudo o que o lar comporta) – sentido que tem a ver com uma experiência muito específica, que é a do ‘senhor’. [Percebam ainda que a cada palavra de que lançamos mão, como essa: “senhor”, um novo leque de sentidos se abre? Os usos que damos a palavra “Senhor”, “Sr.”…] Para quem não seja proprietário sequer de seu próprio lar, ou que seu lar não seja tal como reconheçamos como sendo uma CASA, não pode entender o uso que faz dessa palavra, ou entenderá como sendo algo estranho a ele, algo que foge de sua própria experiência – que eventualmente pode ser a experiência dos ‘despossuídos’, dos sem-posses, sem-domicílio, sem-casa, sem-lar, sem-família.
Quando Freire diz que a alfabetização é um processo criador quer tocar neste ponto. Seria preciso que tais necessidades que concorreram para a invenção da escrita fossem de algum modo revividas pelo educando – como se, para aprender o código fosse preciso também “recriá-lo”. Mas recriá-lo a partir de sua experiência concreta, de como interpreta tal experiência, para só depois codificá-la como escrita e reconhecê-la como leitura.
Portanto, tal escrita e os métodos de seu ensino não dialogam em princípio com a experiência concreta destes educandos, dos filhos do “povo”, de modo que, para eles, a alfabetização se torna um processo difícil e muitas vezes absolutamente ineficaz, por não corresponder a nada de sua experiência concreta, tampouco de sua “experiência vocabular”. Reparemos, no vídeo, o zelo em colher “de casa em casa” as palavras que compõe “universo vocabular” de Angicos (RN), para servirem de “palavras geradoras”: palavras de uso corrente, de uso do “povo” a quem se destina a ação pedagógica, a partir das quais os alunos terão acesso ao código de “todos os fonemas da língua portuguesa”.
Ocorre que, nas nossas escolas ensinamos as palavras que fogem do universo vocabular de nossos alunos, que não têm sequer uso oral delas ou para elas – e portanto não precisariam em circunstâncias nenhumas serem escritas pelo jovem educando, a não ser na escola. Não se trata, obviamente, de abrir mão do que a escola pode e deve mesmo ensinar em termos de “novos vocabulários” que são incorporados aos corpos de cada disciplina, mas apenas para atentarmo-nos a esse abismo que há entre a fala do povo e a palavra escrita, que é a palavra escolar.
Uma escola pública recebe os mais diferentes públicos – portanto, a experiência concreta dos educandos é mais ou menos variada. O exemplo que o vídeo nos apresenta é da escola rural Jaguaquara, na região do Jequié (BA). Por se tratar de uma escola rural, a experiência que a escola lança mão é a da lavoura, experiência comum entre as 600 crianças e suas respectivas famílias. No entanto, aqui em nosso trabalho, pensamos em uma escola de ensino médio, na zona urbana. O grau de generalidade do público, no entanto, vai em sentido inverso à concretude que se espera desta experiência, que é variável, sempre a depender de quem a ação educativa se dirige.
Cumpre lembrar, por outro lado, que Paulo Freire desenvolveu seu trabalho tendo em vista aqueles jovens e adultos que não estiveram na escola ou que abandonaram-na (tratava-se de um Plano Nacional de Alfabetização de Adultos em plena década de 60). O público a que se visava era portanto de adultos analfabetos. Reparemos ainda, no documentário, quando se discute o MOVA (Movimento de Alfabetização): o público a que se dirige a ação educativa é mais uma vez bastante determinado, no caso, os chamados “catadores de lixo”, ou os “catadores de material reciclável”, como eles aprendem a se chamar. A experiência concreta é pois bastante determinada: trata-se do próprio trabalho destes educandos e as relações em que, por este trabalho, eles se reconheçam.
Não é o caso de nossos alunos, no ensino médio regular, ou ao menos não é assim na maior parte das vezes. Nossos alunos nem são tão adultos, nem “tão analfabetos” e, assim, não se trata aqui de propor um processo de alfabetização, como se nada soubessem escrever ou ler. Portanto, uma dificuldade nos apresenta desde já, quanto à escolha dos temas que serão trabalhados. Serão os temas próprios da juventude em geral? Inserção no mercado de trabalho, drogas, sexualidade… são vários temas possíveis.
Todavia, queremos apresentar um outro tema possível, que pode até abarcar todos os demais, que é a experiência concreta do próprio processo de escolarização destes educandos, bem como a escolarização de seus pais, avós, de sua família e, por que não?, também a experiência de seus professores. Junto à escolarização, é necessário também tematizar a experiência com a palavra escrita. Tomar essa questão, as relações com a escola e com o universo letrado, como um problema a ser pensado e refletido também por eles, estudantes.
Uma das passagens mais tocantes do documentário “Paulo Freire Contemporâneo” é justamente a fala dos educandos que, com orgulho e emocionados, narram o que a capacidade de ler, que aprenderam tardiamente, como isto mudou a vida deles, o modo de encarar o mundo e mesmo se expressar, de falar com as pessoas. Como a capacidade de ler e escrever lhes deu certa segurança. O medo que antes sentiam ao ir a qualquer repartição pública ou ao Banco…
Caso perguntemos aos alunos sobre seus pais, quantos deles chegaram a estudar até na faculdade, qual será a proporção? Então, quantos estudaram até o ensino médio? Ou até só o fundamental? Só o pai ou a mãe também? – Então, um primeiro passo do trabalho é um levantamento sobre o grau de escolaridade dos pais dos alunos. Mas poderemos também perguntar sobre os avós, paternos e maternos. Perceberemos como a proporção muda sensivelmente. Não será raro que alunos digam que eles nem sabiam ler e escrever.
O objetivo do levantamento é para que os alunos percebam que eles, no ensino médio, já tenham mais escolaridade senão que seus pais, mais do que os avós. Isso porque a escolarização, no Brasil, é acontecimento recente – se entendermos por escolarização o acesso universal à educação formal que se dá na escola. Para conferir, basta pesquisarmos os índices e gráficos sobre a escolarização nos sites como IBGE ou em livros e revistas especializados em educação, para saber como isto tem evoluído nos últimos 100 anos (desde o início da República), ou nos últimos 50 anos (o professor de Geografia que esteja trabalhando com dados demográficos poderá orientar o trabalho).
Próximo passo é discutir livremente com os alunos as hipóteses que eles tenham sobre essa constatação e que eles registrem essas hipóteses em seus cadernos. Tal procedimento prepara o passo seguinte, que pode ser desenvolvido na disciplina de História. Trata-se de elaborar com os alunos um roteiro de perguntas para uma entrevista, para verificar se essas hipóteses correspondem a interpretação que disso dão os seus pais e avós, que serão primeiramente os entrevistados, sobre sua escolarização ou falta dela. Dizíamos, há pouco, que a escrita [fonética] foi inventada como uma lembrança grafada de uma fala e, de certo modo, ela concorre em sentido contrário da memória, como “tradição oral”. É da tradição oral que podemos partir, daquilo que se fala, de memória. O recurso de que lançamos mão, de entrevistas, é justamente o usado em História Oral, que parte dos relatos, da memória e das interpretações que os entrevistados dão de sua própria história. Há um longo preparo para esta atividade. De saída, sugerimos consultar o Museu da Pessoa [www.museudapessoa.org] e, lá, há um documento que pode servir de guia para o planejamento da atividades. (“Tecnologia Social Da Memória: Para comunidades, movimentos sociais e instituições registrarem suas histórias”, 2009.)
Para sermos mais objetivos no trabalho, será necessário que os alunos entrevistem alguém que não tenha escolaridade ou que não esteja alfabetizado. As perguntas tentarão levar o entrevistado a buscar possíveis motivos para que ele tenha abandonado a escola ou nunca tivesse ido a ela. Por outro lado, perguntar também sobre o que ele imagina sobre os “ganhos” que poderia ter caso soubesse ler e escrever. Qual a falta que isso faz? Qual a importância de saber ler – sentida por aquele que não sabe.
O passo seguinte é que “transcrevam” estas entrevistas – que registrem por escrito as falas, essas vozes de que ouviram sobre o processo de escolarização. Que percebam a importância de registrar por escrito essas falas, caso contrário elas se perderiam por completo no esquecimento.
Para finalizar, a exibição do vídeo-documentário para os alunos, para que comparem os depoimentos do vídeo aos depoimentos que eles colheram.
Nossa memória de professores ainda carrega as marcas daquele tempo em que fomos alunos. Ocorre que, porque sabemos ler, não nos lembramos mais dos encantos da primeira palavra que lemos. Por escrevermos, não nos lembramos do prazer que foi escrever a primeira palavra. Afastamo-nos do prazer e maravilhamento infantil que há em ler e escrever. Há ainda um maravilhamento ao descobrir um sentido oculto nas palavras, como há prazer em escrever as palavras a que nos ligamos afetivamente. No documentário, é o próprio Paulo Freire quem narra a ocasião em que o educando foi à lousa e escreveu o nome da esposa: NI-NA, NINA. “É escrevendo o nome da minha mulher que eu posso reescrever o nome do meu país”.
Outro trabalho a ser desenvolvido pelos alunos partiria da “nossa memória” – que possamos socializar com eles o que era a escola em que estudamos, como eram os professores, como a escola era organizada. Mas sobretudo — o que nos levou a estudar o que estudamos e nos tornarmos professores. O prazer que eventualmente temos entre as palavras de nossas disciplinas, com as descobertas que tivemos ainda na escola e que nos marcaram a ponto de nos mantermos estudando.
Cada grupo de alunos pode escolher uma disciplina, ou um professor, para realizar a entrevista. Uma atividade assim tem como objetivo fazer com que os alunos percebam que o professor não é um “sabe-tudo”, mas também se formou, estudou, como ele, aluno. Cria-se assim uma relação mais horizontal (mais um princípio de Paulo Freire) entre professor e aluno. Depois da entrevista, de novo registro escrito.
Se interpretamos o mundo antes de ler e escrever – poderemos dar novos sentidos para as palavras ou criar novas palavras para aquilo que sentimos? A atividade aqui, em Língua Portuguesa, tematizará as palavras. E se as palavras fossem “coisas”? É certo que as palavras nomeiam coisas – os substantivos são os seus nomes: essa MESA, esta CADEIRA, essa CANETA, aquela CASA… Mas essas palavras que não se referem a coisa alguma, a nada que seja palpável, concreto, material? Uma coisa como SAUDADE ou AMIZADE ou AMOR? E se essas palavras designassem “coisas”? Como elas seriam? Ou ainda, se elas fossem nomes de pessoas? Eis aqui reencontrada a força dos mitos gregos, em que tais palavras assumiam o nome de deuses: como Eros (ou “amor”, em grego, e Cupido para a mitologia romana), Chronos (Tempo), Gaia (Terra) ...
Um bom exercício de criação de sentido é a poesia – versificada ou não, o que aqui pouco importa. Trata-se antes do exercício de fabulação, de criar uma história para apresentar o sentido da palavra. Há vários motes para trabalhar com os alunos, desde as letras de canções que eles mesmos costumam ouvir, até os poemas mais consagradas da literatura.
Colhemos as sugestões abaixo do trabalho das professoras da rede pública do Paraná Luciana Cristina Vargas Cruz e Maria de Fátima Navarro Lins Paul, publicado no Livro Didático Público, da Secretaria de Estado da Educação do Paraná, na edição que estava disponível na internet quando escrevemos este texto, em 2007. Fica aqui a menção a elas. Eis alguns exemplos de temas que podemos desenvolver com os alunos.
“Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto –
como se chama o que sinto?”
[Clarice Lispector]
Ou ainda este:
“Amor é fogo que arde sem se ver
é ferida que dói e não se sente
é um contentamento desconte
é dor que desatina sem doer.”
[Camões]
E mais um poema de Manoel de Barros, que na sua didática, nos ensina como ainda podemos nos maravilhar com as palavras…
UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO, VII
“No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor
dos passarinhos.
(...)
se a criança muda a função de um verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos.
O verbo tem que pegar delírio.”
[Manoel de Barros]
Uma vez que os alunos entrem em contato com a criação deles mesmos, quanto ao sentido que podem dar às palavras, de como a experiência deles pode ser expressa numa história fabulosa – o passo seguinte é tematizar as palavras, como criação de alguém que também quis expressar algum sentido, alguma experiência ali. Um dos recursos que dispomos, como ilustramos, é o da análise etimológica. Todas palavras são “criação”. Todas elas criação de alguém, de quem se esquece, mas a palavra, em sua história, permanece.
Em Biologia há todos aqueles nomes estranhos. Mas poderiam não ser. A atividade que propomos é que os alunos agrupem vários “bichos” em uma classificação que eles mesmos criem. Trata-se assim de uma Novíssima Classificação Inventada dos Bichos. Assim, por exemplo, poderia haver uma categoria de “bichos que fazem barulho”, outra dos “bichos que fazem sons que quase não podemos ouvir” e mais a dos “bichos que não fazem som algum” – em que as várias espécies podem fazer parte, pouco importando aqui a classificação científica mais apropriada. Mas estas categorias têm nomes muito complexos. Então, a partir da etimologia, ou da mera invencionice, criaremos nomes para tais categorias, em uma única palavra. Exemplos: os ‘sonzeiros’, ‘sonzinos’ e os ‘sensons’. Certamente, tais nomes fariam mais sentido para os alunos do que aqueles que damos em biologia. Os alunos poderiam elaborar murais ilustrados com as classificações a que chegaram.
Mas reparem o sentido da atividade. Trata-se antes de interpretar o mundo, depois nomeá-lo, codificá-lo em palavra. Não é diferente com a taxonomia na biologia. Há nela já uma interpretação – e as classificações de que lançam mão é mais ou menos adequada a depender do que se interpretou. Assim, consideramos ao analisar os vários exemplos de seres vivos que fazer som ou não fazer não é coisa de que se tire muito proveito para o estudo deles, mas sim o fato de terem ou não ossos. Assim, temos os grupos de seres "ossudos" e "não-ossudos". Mas não é bem “osso”, explicará a professora de biologia… mas as vértebras – que é isso? Por que é importante saber se o bicho tem isso, "vértebra"? Se é importante, então classificaremos os seres entre os vertebrados e invertebrados, desde que se explique porque isto é importante. E por aí, vai.
O raciocínio vai ao encontro destes passos – primeiro, interpretar o mundo. Depois, dar nomes e escrevê-lo. Ainda tematizar (problematizar) os nomes que inventamos, para buscarmos melhores nomes, para dizer enfim exatamente o que queremos dizer.
Pretendemos aqui, menos que orientar um trabalho, oferecer várias alternativas para que os próprios professores pensem em seus caminhos. Embora sejam marcadas as disciplinas, várias das sugestões que demos podem ser desenvolvidas de outro modo por outras disciplinas. É porque também a prática da docência é um exercício de liberdade e criação. Mas criação com o outro, o educando – que ele também carece criar seus caminhos.
Ao problematizarmos o “universo escolar” pretendemos também que não tomemos as dificuldades dos alunos como natural ou pela índole deles – mas para dizer que a escola também é uma criação, e deve ser recriada no dia-a-dia, a partir dos caminhos de ensino e aprendizagem que oferece. Paulo Freire criticava a escola – como instituição que nasce de uma classe social e impõe padrões e saberes e métodos que nada sabem da experiência concreta de seus alunos. Mesmo a experiência da escolarização – em que nossos alunos aprenderam a ler mal, a escrever pior, a copiar e não pensar, nem criar – deve ser problematizada. Pois a aprendizagem, ler o mundo e o mundo das palavras, há nisso um grande prazer e uma grande felicidade. Pensemos nisso e façamos da escola um lugar feliz. Eis o que a prática da ação educativa freiriana nos ensina: a sermos mais — mais humanos, mais educadores e, por isso, mais felizes.
Obras de Paulo Freire
A Importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 23ªed., 1989.
Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 23ªed., 1996.